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Foi linda a festa, Pai! Foi linda a celebração da 6ª Romaria das Águas e da Terra no domingo dia 18 de junho desse ano. Murcharam e queimaram nossas matas, secaram nossos rios, devastaram a vida espalhada na Bacia do Rio Doce que tinha vida, era limpa e sem fome. Mas esqueceram uma semente, que mesmo tendo léguas a nos separar daquele paraíso perdido de pouco tempo atrás, cá estamos nós a navegar novamente, carentes, cantando uma nova primavera. O que está sendo celebrado?

 

Há oito anos atrás, numa tarde entre tantas outras para as pessoas que moravam ali perto, no município de Mariana, MG, felizes, mas sempre assaltadas pelo medo do que poderia acontecer. Naquela tarde de 05 de novembro de 2015, um forte estrondo e começava ali um êxodo para a morte. Vidas humanas foram ceifadas, vida ao largo de toda a Bacia do Rio Doce e seus afluentes. Esse crime aconteceu a céu aberto, com laudos caros e licenças ambientais sob suspeita. Esse crime cometido por tantas pessoas, tantas empresas, direta ou indiretamente, é um pecado grave.

 

No ano seguinte, 2016, a Igreja Católica com outras Igrejas e organizações sociais iniciou essa grande peregrinação que clama no deserto da ganância, da estupidez, dos interesses financeiros. Naquele mesmo dia 05 de junho de 2016, o Povo de Deus da Bacia do Rio Doce iniciava esse grande movimento de fé e peregrinação. Buscava na Igreja o amparo necessário e isso foi atestado pelo testemunho do Arcebispo de Mariana, Dom Geraldo Lírio Rocha. E agora, essa mesma Igreja tendo à frente o Bispo de Colatina, Dom Lauro Sérgio Versiani, convoca o povo de toda a Bacia do Rio Doce (Minas e Espírito Santo) para seguir em Romaria.

 

Os organizadores calcularam em tordo de quatro a cinco mil pessoas. É muito? Não. É muito pouco, diante do tamanho do desastre ocorrido, das vidas mortas e afetadas pela lama tóxica. É pouco também diante de tantos que professam a mesma fé em Jesus Cristo. Ali em Regência estava um “resto”. Olhando o povo caminhando com o grande cruzeiro, povo pobre, lembrei-me do Texto Sagrado de Isaías 2, 20: “Nesse dia, o resto de Israel, os da casa de Jacó que escaparem, não vão mais procurar apoio naquele que os fere; vão se apoiar, com toda fidelidade, em Javé, o Santo de Israel”. Apesar de tão numeroso o povo de Israel, apenas um resto se manteve na luta. É o resto que faz crescer a esperança. Não tenhamos ilusões com grandes concentrações, grandes multidões.

 

A Vila de Regência no município de Linhares tornou-se templo nesse dia. Nossa casa comum recebeu seu povo para um grande momento de fé e contemplação. Os romeiros foram acolhidos na praça principal e depois em procissão seguiram carregando um grande cruzeiro pela avenida principal, rezando e cantando lindas canções que motivaram a luta ao longo de tantos anos, e seguiram até a foz do Rio Doce, onde as águas carregadas de lama tóxica com dejetos de minério vieram de longe, daquelas represas feitas por empresas exploradoras do ferro que se romperam.

 

Também somos corresponsáveis como herdeiros de famílias que ajudaram a devastar a Mata Atlântica em toda a extensão do Rio Doce. Era para fazer dormentes para a construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas. Esquecemos isso. Mesmo não tendo consciência naquela época, hoje não podemos nos eximir de responsabilidade pela destruição de nossa Casa Comum. A inspiração para a Romaria foi o texto bíblico que trata da criação no livro do Gênesis e a Encíclica do Papa Francisco Laudato Si’.

 

Celebrar sobre as areias que foram cobertas de lama tóxica tinha um sentido muito profundo. A terra sofrida recebe agora os pés dos caminhantes da fé. E ao final da celebração cada um pode levar um vidro contendo água e areia, a mesma, mas agora ressignificada no altar da Misericórdia onde foi celebrada a Eucaristia. O alimento sob a forma de pão e vinho colocava-se sobre o altar. Celebrar o mistério da comunhão naquela manhã de outono sobre as areias de Regência tem um sentido muito profundo. Muito além de tantas outras celebrações que realizamos. A vivência da fé ali naquele lugar foi indescritível.

 

Ao final, outro momento forte: a ficada da grande cruz, do cruzeiro também sobre as mesmas areias. O povo queria ajudar, elevando a cruz, sem auxílio de forças mecânicas, apenas mãos e cordas. Eram muitos braços, juntos, fazendo força para colocar em prumo. O sol brilhando sobre o povo em torno daquele cruzeiro. Era preciso dizer ao mundo que ali houve morte. Era preciso fincar a maior cruz possível, para que não desapareça tão cedo daquele lugar. Memória da morte. Mas para as pessoas que tem fé, não somente isso.

 

E agora? Foi a pergunta que me fiz naquele momento. O que será feito nesse lugar, aos pés do cruzeiro? Quando eu era pequeno no interior lembro que eram fincados grandes cruzeiros no alto das montanhas. Era destino permanente de nosso olhar, mas era também destino permanente de nossas orações em tempos de seca. Subíamos ao monte para rezar, levando água para despejar aos pés da cruz. Vivíamos, sim, um tempo de Igreja mais triunfalista. Agora um mesmo cruzeiro na perspectiva de uma Igreja servidora, que abraça, que acolhe o mundo. Uma Igreja que se fez capaz de alimentar todo o povo, sem necessidade de identificação, que foi para a Romaria após a celebração religiosa. E sobrou muita comida. Moradores da vila puderam levar para suas casas. Lindo gesto!

 

E agora, Regência? O que farás com essa cruz no meio da praia? A memória da morte não se conclui na cruz do Calvário. Se assim fosse, nossa fé seria vã. É preciso irmos além do objeto fincado na praia, que não é mais um simples objeto. Aquele cruzeiro na praia que um dia foi coberta de lama tóxica doravante nos remeterá para um grande compromisso com a vida. A cruz do Calvário nos leva à Ressurreição. Então a semente crescerá a partir dessas areias e o resto, mais fiel ainda, lutando em prol das águas e da terra. Em prol da vida.

 

Edebrande Cavalieri